sexta-feira, 18 de abril de 2014

Páscoa 2014: Mensagem de Dom Humberto Maiztegui Gonçalves

MENSAGEM EPISCOPAL DA PÁSCOA
Cristo nossa vida!

“Ele não está aqui, porque já ressuscitou, como havia dito. Vinde, vede o lugar onde o Senhor jazia”(Mateus 28:6).

Queridos irmãos e irmãs em Cristo Jesus, Senhor Ressuscitado, escrevo para lhes desejar uma Feliz Páscoa. Páscoa, do hebraico pésag, singifica “passagem” e remete a experiência da libertação do povo escravizado e oprimido no Egito. A memória da revelação de Deus como Libertador era celebrada solenemente em sete dias de consumo de pães se fermento e na céia familiar do cordeiro (Êxodo 12:1-12). Jesus, anunciando sua morte de Cruz e Ressurreição celebrou a Páscoa com seus discípulos e discípulas (Mateus 26:17-19). A Páscoa não é apenas a ressurreição de Cristo, é o ponto onde converge toda a revelação de Deus na história da humanidade. Ali, Deus Libertador, revelado por primeira vez no Êxodo, se apresenta em Jesus Cristo, Palavra Encarnada, vive por amor, morre na Cruz de tanto nos amar, carregando sem seu próprio corpo todas as injustiças, as opressões, os preconceitos, e todas as outras formas de pecado. 
Quando celebramos a Ressurreição, celebramos nossa nova vida em Cristo, como nos diz o cântico de Taizé que está em nosso cancioneiro Laudate sob o número 213: “Cristo ressuscitou, Ressuscitemos com ele. Cristo nossa vida”. Celebrar a Páscoa é nos preparar para participar da libertação de todas as nossas mazelas, medos, impedindo que nossas limitações naturais – inclusive nossa existência – nos impeçam de viver em plenitude o amor vitorioso de Deus presente no Senhor Ressuscitado.
Nesta Páscoa estarei celebrando na Paróquia da Benção Divina em São Francisco de Paula e na Missão São Pedro em Canela, apoiando o pároco Revdo. Hermes que também é pároco na Paróquia da Ressurreição, e o Postulante Eleutherio Pinheiro Neto que inicia seu estágio fora da comunidade que o acolheu. Desde aqui recebam minhas orações para que o Senhor Ressuscitado se revele mais uma vez em suas vidas, que o Senhor os surpreenda, anime cada pessoa em cada comunidade e renove vossa esperança na vida que vence a morte.

Dom Humberto Eugenio Maiztegui Gonçalves
Bispo Diocesano

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Evento com Frei Betto: O modelo desenvolvimentista brasileiro e seus impactos socioambientais

O Brasil é um país que possui uma megabiodiversidade com expressiva parcela ainda desconhecida. Nossos ecossistemas brasileiros e nossas riquezas naturais são vitais à população brasileira e ao país, destacando-se a Amazônia como uma grande sistema que desempenha papel chave na regulação do clima sul-americano, inclusive planetário.
Enquanto nossas desigualdades sociais são as maiores entre os países, o modelo econômico e político vigente permite que empresas, em sua maioria multinacionais, se apoderem de nosso solo, água, biodiversidade e minerais. Prioriza-se um modelo colonial exportador de commodities que vem crescentemente degradando a natureza e as condições de vida e os direitos principalmente dos mais pobres. 
Este modelo de insustentabilidade, inerente ao capitalismo, teve uma fase de destaque há cerca de 50 anos, após o golpe militar. Agora se aprofunda em uma fase globalizante de hegemonia do capital financeiro e de megacorporações transnacionais. Impera a obsessão pelo crescimento econômico, pelo consumismo e produtivismo. Um modelo que faz questão de não reconhecer a finitude dos recursos naturais e também que qualquer forma de sustentabilidade não pode coexistir com a lógica de acumulação.
Paradoxalmente, uma década após a discussão de “Um Outro Mundo é Possível”, o Brasil acabou por tornar-se uma engrenagem estratégica no funcionamento desse modelo, ressurgindo a sua condição histórica de exportador de matérias primas. Emergem, de forma inusitada e avassaladora, o império da soja, do agronegócio e da exploração de minerais, dos megaempreendimentos e dos megaeventos, e com predomínio de recursos anabolizantes do BNDES. As campanhas eleitorais, por sua vez, fazem retornar a políticos e partidos parte das verbas utilizadas dessas grandes atividades perversamente impactantes, encobertos por grandes oligopólios de comunicação associados a este esquema.
A crise civilizatória está na mesa. Na conjuntura atual, de inquietação crescente, que teve um dos ápices nas manifestações de rua nas grandes capitais do Brasil, em junho de 2013, faz-se necessário e urgente que se levantem mais e mais estas questões, buscando-se caminhos para o restabelecimento dos movimentos e da construção de outros modelos, que priorizem a Vida.
Para contribuir para o debate, o Mogdema – Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente -, convida a todos para o evento “O modelo desenvolvimentista brasileiro e seus impactos socioambientais” a se realizar no dia 24 de abril de 2014, às 18 h 30 min, com a participação do escritor Frei Betto. 
A atividade ocorrerá no Auditório da Faculdade de Direito da Ufrgs, na av. João Pessoa n. 80, Porto Alegre. 

IEAB reconhece Sagradas Ordens de Pilato Pereira

Na celebração deste Domingo de Ramos, 13 de abril, na Paróquia da Ascensão, em Porto Alegre, o bispo diocesano da Diocese Meridional da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), Dom Humberto Maiztegui Gonçalves, reconheceu as Sagradas Ordens de Pilato Pereira, ordenado diácono e presbítero pela Igreja Católica Apostólica Romana, na Arquidiocese de Porto Alegre. Dom Humberto também anunciou que o Reverendo Pilato Pereira atuará como coadjutor na Paróquia da Ascensão e será o ministro encarregado pelo Ponto Missionário Santo André, em Guaíba.
Em sua pregação, Dom Humberto falou sobre a trajetória vocacional de Pilato e o processo de reconhecimento de suas Ordens. O bispo diocesano relatou que quando assumiu como pároco na Paróquia São Lucas de Canoas, no ano de 2010, Pilato e sua companheira Luciméia Gall König passaram a fazer parte daquela comunidade. Em seguida, ambos foram recebidos pelo então bispo diocesano, Dom Orlando de Oliveira, e passaram a atuar na pastoral da Paróquia.
Dom Humberto explicou que Pilato Pereira fez parte da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos e foi ordenado diácono e presbítero, através da Igreja Católica Romana, e que agora ocorre o reconhecimento das suas Ordens pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que o acolhe no clero da Diocese Meridional.
A cerimônia contou com a presença de paroquianos das paróquias da Ascensão e São Lucas de Canoas e familiares e amigos de Pilato. O Frei Capuchinho e Reitor da ESTEF (Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana), Aldir Crócoli, esteve presente, concelebrando com demais presbíteros da Diocese Meridional. Além de Dom Humberto, também estiveram presentes os bispos eméritos, Dom Orlando Santos de Oliveira e Dom Clovis Erly Rodrigues. 

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Rowan Williams, ex-líder da Igreja Anglicana, alerta sobre catástrofe climática

Terça, 01 de abril de 2014
Rowan Williams, ex-arcebispo de Cantuária, atacou os estilos de vida ocidentais por eles estarem causando mudanças que impulsionam a “crise do meio ambiente no qual vivemos”.
A reportagem é de Robert Mendick, publicada no sítio The Telegraph, 29-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Num artigo publicado no jornal The Telegraph, Williams diz que as “terríveis” inundações e tempestades que devastaram partes da Inglaterra neste último ano foram uma demonstração do “que podemos esperar” no futuro. Ele também critica fortemente os céticos da mudança climática.

As inundações na Inglaterra e as “catástrofes” relacionadas com o clima nos países mais pobres do planeta, insiste ele, são os indicativos mais claros até agora de que as previsões do “aquecimento acelerado da terra” causado pela “queima descontrolada de combustíveis fósseis (…) estão se tornando realidade”.

Seu apelo para se combater o aquecimento global reduzindo o consumo de combustíveis fósseis vem na véspera da publicação do estudo de um respeitado estudo sobre o impacto das mudanças climáticas.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, irá publicar seu mais recente estudo – de milhares de páginas – sobre as consequências do aumento previsto nas temperaturas globais.

Segundo um trecho que vazou à imprensa, o relatório irá afirmar que o custo do combate aos efeitos do aumento na temperatura de 2.5 graus célsius, no final deste século, será de 60 bilhões de libras esterlinas anuais (cerca de 225 bilhões de reais). O texto mostrará que o impacto das mudanças do clima vai ser sentida, com mais intensidade, na África, na América do Sul e na Ásia e apresentará previsões de prever secas, escassez de alimentos e um aumento no índice de doenças tais como a malária.

Céticos sustentam que, embora o planeta esteja aquecendo, não está claro que isso acontece por causa da ação do homem. Eles apontam para erros em relatórios anteriores produzidos pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas e acusam a indústria do aquecimento global de elevar os riscos de uma mudança climática, o que tem consequentemente levado à introdução, nenhum pouco barata, de políticas energéticas verdes.

Mas Williams, até pouco tempo líder da Igreja Anglicana, escreve: “Durante anos ouvimos as previsões de que a queima descontrolada de combustíveis fósseis irá levar a um aquecimento acelerado do planeta. O que agora está acontecendo indica que estas previsões estão se tornando verdadeiras; nossas ações têm gerado consequências que são profundamente ameaçadoras para muitas das comunidades mais pobres do mundo”.

E acrescentou: “Sem dúvida, os países ricos e industrializados foram os que mais contribuíram para a poluição atmosférica. Tanto o nosso estilo de vida atual quanto a história industrial de como criamos tais possibilidades para nós mesmos tem que assumir a responsabilidade por estar impulsionando uma crise do meio ambiente no qual vivemos”.

Williams, escrevendo na qualidade de presidente da Christian Aid, disse que as tempestades há pouco ocorridas e que devastaram a Inglaterra trouxeram a questão das mudanças climáticas à tona no país e que o relatório do IPCC, a ser publicado num encontro especificamente convocado a acontecer em Yokohama (Japão) nesta segunda-feira, coloca “nossos problemas locais num contexto global profundamente perturbador”.

O IPCC, diz ele, estará “mostrando que (…) nós [ingleses] nos saímos, na verdade, relativamente bem em comparação com outros países”.

Enquanto que o “caos [das enchentes] veio como um choque para muitos de nós”, outros países tais como Bangladesh e Quênia sofreram catástrofes muito piores causadas pelas mudanças climáticas ao longo de muitos anos.

Williams argumenta contrariamente aos céticos do aquecimento global e aqueles que negam as mudanças climáticas. “Há, naturalmente, os que duvidam do papel da ação humana nesta questão, e que argumentam que deveríamos direcionar nossos esforços apenas para nos adaptar às mudanças que são inevitáveis, em vez de modificar nosso comportamento”, afirmou o religioso.

“Tal abordagem pode ser ‘bem interessante’ na Inglaterra, onde as defesas contra inundações e outras medidas podem ser adaptadas de forma relativamente barata. Porém, nos países mais vulneráveis e pobres mais afetados pelo aquecimento global, ela não é uma opção”.

A intervenção de Williams no debate sobre a mudança climática vem ao mesmo tempo em que autoridades e pesquisadores que se encontram no Japão finalizam o texto do estudo conduzido pelo Painel Intergovernamental. O relatório – uma coleção de provas científicas reunidas a respeito da mudança climática – irá focalizar os impactos do aquecimento global. O texto irá mostrar que a África será afetada por secas mais longas, que ameaçarão animais e o rendimento de culturas agrícolas.

O IPCC espera ver uma piora na saúde como resultado de um aumento da desnutrição, de casos de malária e outras doenças.

O aumento da temperatura vai também afetar a produção e segurança alimentar em regiões da Ásia, com uma queda na produção de arroz causada por um período de crescimento mais curto.

O relatório do IPCC irá dizer que a região norte da Ásia se beneficiará com temperaturas mais quentes, embora levando a um aumento da produção de trigo e cereais. Na América do Sul, o IPCC dirá que o gelo e as geleiras nos Andes vão estar “recuando num nível alarmante”, afetando o abastecimento de água enquanto que “ecossistemas singulares” serão ameaçados, seja pelas mudanças climáticas, seja pelo aumento da industrialização.

50 anos de um golpe que ainda nos atinge

Carlos Eduardo Calvani

Para Anivaldo Padilha, irmão de Koinonia
Luiz Caetano Grecco Teixeira, irmão de Koinonia e sacerdócio
Leonildo Silveira Campos, ex-professor e irmão de lutas e ministérios,

Ainda não completei 50 anos. Nasci dois anos após o golpe militar de 1964. Mas aquele golpe atingiu toda minha geração, além das gerações que nos precederam na oposição e que trazem ainda hoje as marcas físicas e emocionais de sua resistência ao totalitarismo.

A única memória concreta que tenho é de um episódio acontecido talvez em 1973 ou 74. Sei que foi em um destes anos por causa da escola na qual eu estudava com 7 ou 8 anos, ainda aprendendo a ler e a escrever. Um ruído diferente interrompeu a rotina das aulas vespertinas e um grupo de soldados (tinham, talvez entre 19 e 22 anos?) adentrou a sala e passou a revistar nossas mochilas. A professora ficou acuada e quieta no canto. Não sei o que procuravam. Mas lembro muito bem dos milicos fardados e empunhando orgulhosamente seus fuzis perante um grupo de crianças que mal saía das fraldas. Certamente ficamos com medo e intimidados. Hoje fico imaginando o que aconteceria se, por um deslize, descuido ou pressão psicológica, um dedo mal posicionado apertasse algum gatilho. Precisávamos daquela demonstração ou era simplesmente para amedrontar crianças que nem sabiam o que era comunismo?

Após a aula quando contei a meu avô o que acontecera, ele ficou indignado, e disse apenas: “cuidado… um dia você entenderá, quando tudo isso passar…”. Ele era funcionário administrativo de 3º. ou 4º. Escalão do DERMAT (Departamento de Estradas e Rodagens do Mato antigo estado do Mato Grosso, antes da divisão territorial). Não cursara faculdade nem fazia parte de qualquer Partido Político da época. Era um “homem comum” que vivia no círculo “casa-trabalho-igreja”, com poucas excursões adicionais a outros círculos. O único ambiente “diferente” desse círculo ao qual me levava vez ou outra era o grupo DeMolay de uma loja maçônica da qual também se afastou mais ou menos na mesma época. Quando lhe perguntei porque não íamos mais à loja, sua resposta foi simples e curta: “tudo o que você aprendeu até agora será útil em sua vida, mas não confie mais nas pessoas que estão ali; elas estão comprometidas com os militares”. Anos mais tarde é que fiquei sabendo que as lojas maçônicas no Brasil nunca mais foram as mesmas após 1964. O golpe atingiu profundamente as lojas que se dividiram após episódios traumáticos de “irmãos” traindo e entregando outros à tortura (os maçons perseguidos geralmente eram profissionais liberais da imprensa – jornalistas- educação, advocacia ou homens ligados à cultura e às artes). As lojas consideradas de maioria “esquerdista” geralmente “abateram colunas” e muitos filhos-da-viúva perseguidos desistiram de plantar acácias nos mesmos orientes de seus delatores. Anos mais tarde, lendo “Brasil nunca mais”, “Inquisição sem fogueiras”, “Protestantismo e Repressão” e outros textos, descobri que muitas lideranças religiosas também traíram qual Judas, lavaram as mãos qual Pilatos ou literalmente perseguiram e torturaram os que estavam sob seus cuidados pastorais.

Militares… volta e meia esse termo era pronunciado em casa, com certo medo ou até sussurradamente. Meu avô falava muito pouco, a ponto de alguns parentes o apelidarem familiarmente de “Zacarias”, o pai de João Batista que ficou mudo. Talvez, exatamente por isso, quando falava, eu parava para ouvir. A única vez em que o vi falar publicamente foi em um culto de uma congregação presbiteriana. O pastor, por algum motivo estava ausente e ele, como presbítero (líder leigo), ficou encarregado de dirigir o culto e pronunciar o sermão. Creio que eu tinha não mais que 9 ou 10 anos, portanto em 1975 ou 1976. O culto foi dirigido com poucas palavras e uma certa sobriedade nos gestos. Meu avô não falava… apenas gesticulava indicando o momento para ficar em pé ou para se sentar. Lembro-me porém, de um detalhe inesquecível neste culto – seu sermão foi sobre a conversão do centurião Cornélio. Não tenho condições de recordar o conteúdo enfatizado, mas por algum motivo, lembro uma frase que se tornou alvo de polêmica posterior: “até os militares podem se converter!’.

Novamente o termo “militares”…. no mesmo domingo, retornando do culto e durante algumas semanas seguintes, ouvi minha avó reclamando que ele não deveria ter dito o que dissera porque era “perigoso”. O “sermão”, porém, não causou qualquer problema à nossa família, talvez porque a congregação era pequena, com poucos freqüentadores, e ainda no seu início, reunindo-se em uma sala alugada na Rua Calarge. Mudou várias vezes de lugar e atualmente é a 1ª Igreja Presbiteriana Independente de Campo Grande, MS. Mesmo não recordando o teor do sermão, ainda me pergunto: por que ele dissera algo considerado “perigoso” por minha avó? Militares não podiam se converter? Ou não precisavam se converter?

Aos poucos o substantivo “militar” e o substantivo “perigoso” começaram a se fundir e minha tímida percepção de garoto. Meu avô tinha certas restrições a um de nossos parentes, um de meus tios que trabalhava no departamento de comunicação de uma companhia aérea já extinta, e que fazia “serviços extras” durante as madrugadas e com quem meu avô não queria muito contato. Por algum motivo ele era também “perigoso”. Algumas vezes, quando perguntava à sua esposa onde estava o “tio Celso”, ela simplesmente respondia: “está de plantão, fazendo uns “servicinhos extra, consertando cabos telefônicos”. Ele ainda está vivo, e hoje sei que era funcionário do SNI, encarregando de grampos e outras estratégias de espionagem. Vive recluso e o máximo que faz é jogar bozó e dominó com outros aposentados, e quando lhe perguntam algo sobre aquela época, simplesmente responde: “isso já passou”.

Tenho um amigo militar da reserva. Aposentado, ou como ele mesmo diz, “milico de pijama”. Por morarmos em condomínio, às vezes nos encontramos e eventualmente almoçamos juntos aos domingos. É um senhor já de certa idade, e pelo pouco que sei, no final dos anos 60 foi soldado, cabo e sargento, tornando-se oficial na 2ª metade dos anos 70, já no governo Geisel. Hoje é coronel aposentado. Gosta de Raquel Sheherazade. É “de direita”, como dizemos em nossos círculos. Respeito-o por sua idade, mas não deixo passar oportunidade para que ele saiba que sou, teoricamente, “de esquerda”. Curiosamente, ele toca violão muito e bem e sabe “de cor” a letra de “Caminhando e cantando”, “Apesar de você” e outras canções de resistência da época. Nunca me deu motivos para ter ódio, raiva ou aversão dele. Não sei qual foi sua atuação durante a ditadura nos anos 60 e 70, mas já confidenciou em algumas ocasiões que houve muitos exageros por parte do exército. A vida me ensinou que nem tudo é “preto e branco”. Há tons de cinzas e nuances demodês. Meu vizinho, pelo que conta, nascido em família pobre do interior, só tinha duas opções na vida: ser padre ou ser milico. Tornou-se milico. Se tivesse seguido o caminho religioso, talvez fosse hoje um bom colega no clero. Ou não?

Também tive paroquianos militares da reserva. Um deles, também coronel reformado, era homem extremamente sensível, daqueles que se emociona e chora durante o cântico de hinos ou em alguns momentos do sermão. Sempre solícito, prestativo e fiel à Igreja, também não gostava de falar de seus tempos de milico, e nunca reagiu negativamente aos sermões em que aproveitei para criticar o militarismo ou as forças armadas. Até mesmo participou de encenações amadoras da “Paixão de Cristo” na semana santa paroquial, mas no papel de “discípulo”, pois dizia não gostar de violência, e sempre que tocávamos em algum assunto referente ao golpe militar, ele dizia: “entendo o que o senhor fala, só espero que não esteja me dando indiretas, pois nunca concordei com certos exageros”.

Muitos militares que estavam na ativa nos anos 60 e 70 ainda estão por aí. Perigosos? Sinceramente, não sei, “o que andam suspirando pelas alcovas” (Chico Buarque). Nós, clérigos e sacerdotes, sempre tentamos nos equilibrar entre o ministério profético e a compaixão pastoral – e sempre a exercitamos diante de pessoas idosas e atormentadas por culpas e pelos fantasmas de seu passado. Também nos esforçamos para cumprir nossos votos de ordenação, que implicam em acompanhar pastoralmente todas as pessoas – ricas ou pobres, jovens ou idosas – até a hora de sua morte. Tal compromisso, porém, não pode ser tomado como desculpa para silenciar nosso próprio clamor e solidariedade a muitas pessoas de mais idade (e seus familiares) que sofreram torturas,violências diversas e que foram afrontadas em seus direitos humanos mais básicos. nosso reconhecimento e gratidão a eles, elas e a seus familiares mais próximos são impossíveis de ser traduzidos em palavras. Muitas vezes evitamos mencionar tais episódios em sua presença, pois sabemos que sua dor física e existencial é incomensurável, como também nossa gratidão por sua bravura. A resistência deles e delas, entre outras coisas, serviu para amenizar os coices do golpe militar de 50 anos atrás, que poderiam ter nos machucado com uma intensidade bem mais traumática que as dores que ainda nos ferem.

Se alguma coisa há a ser comemorada 50 anos depois de 1964, não é o golpe,  mas a resistência de muitos anivaldos, caetanos e leonildos, que ofereceram seus corpos em sacrifício para que os cassetetes, fuzis e tanques não nos assolassem. A eles e elas, minha sincera gratidão, e a certeza de que serão lembrados em ações de graças perante o altar na Semana Santa e no Domingo de Páscoa. Afinal, a tradição cristã nos lembra: “onde está, ó morte, a tua vitória?”. É tempo de agradecer e “esbanjar poesia” – não pelo golpe – mas por todas as pessoas que ofereceram resistência à morte e que, ressuscitados, continuam a nos encantar com suas histórias.

Na semana santa de 2014, 50 anos depois de 1964, quando relembramos o julgamento injusto e desumano sofrido por Jesus Cristo, e a brutalidade militar e religiosa que o martirizou, é oportunidade de lembrar e agradecer pela resistência de muitos e de clamar para que o veneno desse cálice/cale-se amargo nunca mais se ofereça ao nosso povo.

Acabo de ouvir belo depoimento de Gilberto Gil em documentário, sobre a música “Cálice” (https://www.youtube.com/watch?v=8CnSiaP-jL4). Recomendo aos interessados pela densidade emocional, política e existencial do testemunho e da canção, e silenciosamente, elevo minha oração:

“Pai, afasta de mim esse cálice!”
O cálice amargo do totalitarismo, da brutalidade e da violência
O “Cale-se!” dos silêncios impostos por gritos ou palavras-de-ordem;
Os cálices preparados em coquetéis militares
E em cerimônias religiosas
Cujos venenos já foram alquimizados nos bastidores
Senhor, tem piedade de nós.
Cristo, tem piedade de nós…
Tem misericórdia, Senhor, dos que ainda sofrem a dor do golpe
Certamente, é dor imensurável
Afinal, “médice” a dor ???????
Como beber dessa bebida amarga?
como beber o cálice da censura política, cultural e religiosa?
O cálice do escravizante poder econômico?
O cálice da invisibilidade imposta a a gays e lébicas?
O cálice sem-nada dos pobres?
O cálice envenenado das políticas indigenistas?
O cálice evangélico que demoniza as religiões afro-brasileiras?
O cálice solitário da velhice desamparada?
O cálice sangrento da violência doméstica?
O cálice imperdoável dos abusos sexuais às crianças?
Afasta, Pai….
“De muito gorda a porca já não anda…”
Não permita, Pai, que nossas instituições engordem…
torne-as leves e dançarinas…
não permita que a gordura paralisante
atrofie as instituições políticas
e acomode as instituições religiosas
sobretudo, essas, que deveriam ser ágeis e translúcidas
Não permita, Pai, que a gordura da soberba e da prosperidade
enriqueçam e ensoberbeçam as igrejas
torn-as mais pobres, cada vez mais pobres
para que sejam leves
Preserva nossa memória para sempre reafirmar
o que não queremos e não merecemos:
Esses cálices amargos
E o “cale-se” que nós mesmos interiorizamos
Kyrie… afasta de nós esse cálice!

Fonte: PALAVRA ABERTA